Como conceder empréstimos à população de baixa renda, de maior risco de inadimplência, e com taxas de juros menores, ainda por cima?

Dez entre dez apresentações de fintechs e bancos digitais apontam a grande quantidade de brasileiros não bancarizados, estimada na casa dos 45 milhões de pessoas, como um enorme potencial para a expansão dos negócios no país.

Sem dúvida são muitas as oportunidades relacionadas à oferta de serviços financeiros à baixa renda. Estimativas de mercado falam em mais de 800 bilhões de reais movimentados por consumidores sem conta em banco. Os pagamentos em dinheiro ainda responderiam por pelo menos 30% do consumo das famílias.

Neste sentido, parece haver, de fato, grande potencial para negócios quando o assunto é, por exemplo, migração de meios de pagamento, especialmente se levarmos em conta o fato de que já há mais smartphones ativos do que habitantes no país.

Também não é possível ignorar a revolução que as fintechs e os bancos digitais já representam quando o assunto é agilidade, usabilidade, desburocratização e qualidade do atendimento, tudo isto a um custo muito mais baixo para os clientes quando comparado ao das tarifas cobradas pelos bancos tradicionais.

É possível dizer o mesmo, contudo, quando o tema é crédito?

Há, realmente, uma grande oportunidade para oferta de crédito a esses milhões de brasileiros pobres e não bancarizados?

Ainda que a resposta seja positiva, fica outra pergunta: seriam os bancos digitais e as fintechs as empresas com as melhores condições para superar as barreiras estruturais que dificultam o acesso de boa parte da população brasileira ao crédito?

Longe de querer esgotar um tema tão complexo neste breve artigo, o objetivo aqui é apenas apresentar dados e questionamentos que deveriam ao menos colocar em dúvida a ideia de que a transformação digital, por si só, estaria expandindo a fronteira do crédito aos rincões do país.

Pobreza e perfil de consumo da baixa renda

De acordo com dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) divulgada recentemente pelo IBGE, um quarto da população brasileira, ou 52,5 milhões de pessoas, ainda vivia, em 2018, com menos de R$ 420 per capta por mês.

É razoável imaginar que a boa parte dos 45 milhões de adultos não bancarizados estejam entre esses mais de 50 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza. A outra parcela, ainda que acima da linha da pobreza, também deve fazer parte dos segmentos de menor renda. Afinal, mais da metade dos brasileiros (57,6%, para ser exato) possuíam rendimento domiciliar per capita de até R$ 954,00.

Sabe-se que, quanto mais pobre a família, mais comprometida estará a sua renda com bens e serviços de primeira necessidade.

Apenas para se ter uma ideia, segundo a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, referente aos anos de 2017 e 2018, nas famílias com renda mensal de até R$ 1.908, as despesas com alimentação, aluguel, transporte urbano e remédios responderam por 48,9% do total de despesas, contra somente 20,1% no caso das famílias com renda mensal superior a R$ 23.850.

Fica, assim, uma primeira pergunta: fará sentido ao setor privado, em particular aos bancos digitais e fintechs, dar crédito a juros baixos para quem mal tem recursos para pagar as contas básicas todos os meses?

Desigualdades no acesso à tecnologia

Custo geral da tecnologia (acesso à internet e smartphones, por exemplo), baixo conhecimento tecnológico da população e carência ou inadequação de infraestrutura tecnológica, infelizmente, ainda são obstáculos importantes ao acesso a serviços financeiros digitais no Brasil, especialmente entre a população mais pobre.

Embora o acesso à internet no país seja crescente (o percentual de utilização da internet nos domicílios subiu de 69,3% em 2016 para 74,9% em 2017, de acordo com a última PNAD Contínua TIC do IBGE), dos 54,8 milhões de pessoas de 10 anos ou mais que não utilizaram a Internet, 38,5% não sabiam usar a Internet, 36,7% não tinham interesse em acessar, 13,7% achavam serviço de acesso à internet caro, para 4,9% o serviço de acesso à internet não estava disponível nos locais que costumavam frequentar e, por fim, para 4,5%, o equipamento eletrônico necessário era caro.

A questões do custo e do conhecimento pesam, especialmente, entre os mais pobres, por razões óbvias. Na região Nordeste, por exemplo, sobe para 40,8% a parcela dos que não sabiam usar a internet, para 15,5% a dos que achavam o serviço de internet caro e para 6,6% a dos que julgavam caro o equipamento eletrônico necessário.

Infraestrutura também é um obstáculo a ser superado. Na região Norte, sobe para 14,6% a parcela daqueles que não utilizaram internet porque o serviço de acesso não estava disponível nos locais que costumavam frequentar.

Barreiras tecnológicas, portanto, ainda tendem a limitar a utilização de serviços digitais entre a população de menor renda, restringindo, com isto, o alcance de fintechs e bancos digitais.

Taxa de juros e inadimplência

De acordo com o Banco Central, o custo de captação respondeu por 37,3% do custo do crédito no Brasil entre 2016 e 2018. A inadimplência respondeu por 23,3%, as despesas administrativas, por 17,2%, tributos e Fundo Garantidor de Crédito, por 12,9% e a margem financeiras das instituições, por 9,4%.

De maneira geral, instituições de menor porte tendem a arcar com maior custo de captação. Por outro lado, com atendimento físico mais enxuto, quando não inexistente, é possível que fintechs e bancos digitais apresentem despesas administrativas relativamente menores, bem como margens financeiras reduzidas, especialmente na fase inicial das operações.

Em relação à inadimplência, o maior volume de informações disponíveis e o aprimoramento dos modelos estatísticos e computacionais tendem a melhorar a avaliação de riscos, sem dúvidas. Por que, entretanto, fintechs e bancos digitais estariam mais capacitados do que os bancos tradicionais na utilização dos dados?

Além disto, é exatamente entre a população de menor renda que as taxas de inadimplência são mais altas. De acordo com a CNC, em outubro, 27,8% das famílias com renda de até dez salário mínimos estavam com contas em atraso, contra 12% no caso das famílias que ganhavam mais de dez salários mínimos.

É também entre as famílias de menor renda que notamos um crescimento mais acelerado da inadimplência no atual ciclo de expansão do crédito.

Um dos principais obstáculos para o aumento do acesso ao crédito no Brasil, como se sabe, é a elevada taxa de juros. Como dar crédito à baixa renda, de maior risco, com taxas de juros menores, ainda por cima?

De fato, levantamento realizado pela área de Indicadores e Estudos Econômicos da Boa Vista entre outubro e novembro não identificou taxas de juros de fintechs e bancos digitais sistematicamente menores do que as cobradas por bancos tradicionais em empréstimos sem garantia.

Segundo pesquisa realizada pela PwC com fintechs de crédito, a aprovação do crédito mais rápida e menor burocrática é o principal gargalo que essas empresas pretendem solucionar, com 86% das respostas, seguido por melhoria da experiência do cliente (86%) e uso de tecnologia (79%). Melhores condições de pagamento aparece apenas na quarta posição, com 67% das respostas, seguido por aumento do índice de aprovação do crédito (44%) e aumento do limite de crédito ofertado (42%).

Empréstimos com juros altos e aprovação rápida na baixa renda é sinônimo de maior endividamento e inadimplência, como já mostram os dados do rotativo do cartão de crédito.

Conclusão

É verdade que a revolução digital dos serviços financeiros parece estar apenas começando, de forma que ainda é cedo para tentar avaliar seu impacto potencial na inclusão financeira e no mercado de crédito.

Já em 2018, segundo o Banco Central, o telefone celular se tornou o principal canal para tomada de empréstimos e financiamentos, com 38% das transações, superando agências e postos tradicionais de atendimento (37%). O que não quer dizer que a migração de canais esteja mudando o perfil dos tomadores.

Por isto, é preciso buscar formas de medir melhor a evolução do acesso a crédito e demais serviços financeiros, fundamental para o desenvolvimento do Brasil e que parece ter balizado os planos de negócio de boa parte das fintechs e bancos digitais já em atuação no país.

Por enquanto, ao menos, sem subsídios públicos ou expansão de modelos alternativos, como os de microcrédito, ainda é difícil vislumbrar um maior acesso à crédito da população mais pobre e sem conta em banco decorrente, simplesmente, da digitalização dos serviços financeiros e da expansão das fintechs, de forma que o potencial de mercado de 45 milhões de brasileiros não bancarizados, especialmente quando o tema é crédito, parece bastante superestimado.