Apesar de inadimplência baixa, diminuição das operações com recursos direcionados e maior concorrência com fintechs, spread bancário volta a subir e segue acima da média histórica

Por Vitor França | Economista da Boa Vista

*Com Flávio Calife, Economista da Boa Vista

 

“Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”, dizia Nelson Rodrigues. Nem dinheiro, poderíamos completar, evocando as inelutáveis leis do mercado.

Criticar os bancos por seus lucros astronômicos e suas obscenas taxas de juros cabe no discurso de um sindicalista ou presidente de centro acadêmico, mas não de quem se propõe a realmente tentar entender o problema do elevado spread bancário brasileiro.

“Há coisas na vida que só o Sobrenatural de Almeida explica”, dizia o cronista na tentativa de explicar o inexplicável no futebol.

Evocar o Sr. Almeida para explicar as altas taxas de juros cobradas no Brasil, contudo, também não parece ser o melhor caminho. Afinal, se as taxas são altas é porque existem condições objetivas para tal.

Resta-nos, assim, fazer o papel de idiotas da objetividade. Vamos aos fatos concretos.

Em julho, de acordo com os últimos dados do Banco Central, a diferença entre os juros que os bancos pagaram para as aplicações financeiras e o que eles cobraram pelos empréstimos – o famoso spread bancário – atingiu 31,6 pontos percentuais (p.p.) nas operações de crédito com recursos livres, contra 27,8 p.p. em dezembro de 2018 e uma média histórica (desde junho de 2000) de 28,3 pontos.

Ou seja, o spread subiu neste ano e vem se mantendo acima da média histórica. Em outras palavras, a redução recente do custo de captação (juros que os bancos pagam para as aplicações) não está chegando ao consumidor na mesma proporção.

Além disto, segundo dados do Banco Mundial referentes a 2018, o Brasil ocupa uma desonrosa segunda colocação no ranking dos maiores spreads do mundo, atrás de Madagascar (42,6 p.p.) e à frente de Gâmbia (19 p.p.), Quirguistão (17,1 p.p.) e São Tomé e Príncipe (16,1%). Na América Latina, a média ficou em 7 pontos percentuais.

“O brasileiro não está preparado para ser ‘o maior do mundo’ em coisa nenhuma”, ironizaria Nelson...

Ao analisarmos a série histórica, notamos que os picos do spread bancário, quase sempre associados ao crescimento da inadimplência, ocorreram em momentos de aumento significativo do desemprego (2017), do risco (início de 2009) ou do endividamento das famílias (final de 2011).

Atualmente, porém, apesar do ligeiro aumento do endividamento – que segue, contudo, inferior ao do período pré-crise –, a inadimplência dos consumidores segue baixa, próxima aos menores patamares da história, e o desemprego está em queda – decorrente, é verdade, do aumento do emprego precário, por conta própria e informal. Ainda assim, o spread voltou a crescer.

Além da inadimplência, especialistas costumam apontar as despesas administrativas, os tributos, os recursos direcionados, os depósitos compulsórios, a dificuldade de recuperação de crédito junto aos inadimplentes e o alto grau de concentração bancária entre as principais causas do elevado spread.

A deterioração de nenhum desses indicadores, no entanto, parece justificar a alta recente. Pelo contrário, o que se observa é continuidade da redução das operações de crédito com recursos direcionados, estabilidade da participação das carteiras de maior risco e sem garantia (cheque especial e rotativo do cartão de crédito) e, supostamente, uma maior competição decorrente da entrada das fintechs no mercado.

De fato, é possível notar o efeito da concorrência com as fintechs em linhas como a de receitas de serviços de cartão, que ficaram praticamente estáveis nos últimos doze meses nos dois maiores bancos privados do país, contra uma alta média de 5% das demais receitas de serviços.

O spread médio, contudo, ainda sobe, o que suscita uma série de questões. As fintechs estão realmente ofertando empréstimos com juros mais baixos? Os consumidores estão buscando financiamentos nas fintechs? As fintechs têm condições de ofertar crédito para os mesmos clientes dos bancos, em especial os de baixa renda fora das regiões metropolitanas do Sul e Sudeste? As fintechs conseguem chegar nestes clientes, ou apenas nos mais ricos, escolarizados e conectados, que já pagavam menos tarifas e juros menores?

Em evento recente, o diretor de organização do sistema financeiro e de resolução do Banco Central (BC), João Manoel Pinho de Mello, chamou atenção ao fato de que a falta de competição seria um problema maior do que a concentração bancária em si. Faz todo o sentido.

Parece-nos fundamental, assim, compreender melhor as barreiras (informacionais, econômicas, educacionais, comportamentais) que dificultam a competição no setor. Por que, por exemplo, mesmo diante de uma oferta crescente de serviços digitais sem tarifas, as receitas com tarifas de conta corrente dos três maiores bancos privados do país cresceram 7,4% nos últimos 12 meses – ante uma inflação de apenas 3,4% no período?

Em termos práticos, de nada adianta simplesmente acusar a ganância dos bancos. Nem evocar o Sobrenatural de Almeida – ainda que um mistério aparentemente insondável continue a pairar sobre nosso obsceno spread bancário.